O problema mente-corpo permanece relevante para a neurociência e para a psicopatologia

O “problema mente-corpo” é um dilema filosófico basilar para o estudo dos processos psicológicos e sua relação com processos (neuro)biológicos. Pode ser colocado da seguinte forma: o que significa dizer que há uma mente e um corpo, e qual a natureza da interação entre essas duas coisas?

Existe uma infinidade de respostas a esse problema – que é, por natureza, filosófico. Essas respostas nem sempre passam pela forma como o pensamento “ocidental” o colocou; por exemplo, para boa parte do pensamento ameríndio, a separação entre essas categorias não faz sentido.

O  problema mente-corpo, conforme apresentado por René Descartes, é uma questão fundamental da filosofia que explora a relação entre a consciência (a mente) e a matéria física (o corpo). Descartes, um filósofo do século XVII, propôs que a mente e o corpo são substâncias distintas, com a mente sendo não-física e o corpo sendo físico. Esta visão é conhecida como dualismo cartesiano, ou dualismo de substâncias. Descartes argumentava que a mente é a sede da consciência e da racionalidade, capaz de pensar e existir independentemente do corpo. Ele famosamente declarou “Cogito, ergo sum” (“Penso, logo existo”), sugerindo que a capacidade de pensar é prova da existência da mente. Por outro lado, o corpo é uma entidade extensa, regida pelas leis da física e capaz de interagir com o mundo material.

O desafio proposto por Descartes é entender como essas duas substâncias tão diferentes podem interagir. Como pode a mente imaterial influenciar o corpo físico e vice-versa? Este problema ainda é debatido na filosofia contemporânea e na ciência cognitiva, com várias teorias tentando explicar essa interação complexa. O dualismo de Descartes abriu caminho para inúmeras discussões e investigações sobre a natureza da consciência e da identidade pessoal.

Como o dualismo de substâncias propõe que os processos mentais são parte de uma substância diferente da matéria, passou a ser rejeitado pela maioria dos cientistas, que viam nessa proposição a ideia de uma alma ou espírito separado do corpo. Assim, a grande maioria das tentativas de solução do problema tendem a postular a existência de uma única substância, o que costuma ser chamado de monismo – mais especificamente, uma substância material regida pelas leis da Física.

Atualmente, a maioria das perspectivas filosóficas sobre a relação entre mente e cérebro são fisicalistas – isso é, assumem que todos os fenômenos são físicos ou, pelo menos, têm uma base física. Em outras palavras, essa visão sugere que todos os fenômenos do universo, incluindo pensamentos, emoções e consciência, podem ser explicados através das leis da física e da química. Existe uma grande variedade de teorias fisicalistas – desde teorias da identidade até teorias eliminativistas.

O fisicalismo teve uma influência significativa na psiquiatria contemporânea. Essa perspectiva filosófica reforça a ideia de que os processos mentais são, em última análise, processos cerebrais – e, portanto, que transtornos mentais têm uma base biológica. Isso não significa assumir uma visão explicitamente reducionista, como veremos à frente.

Na saúde mental, essa visão se manifesta na ênfase em abordagens biológicas para entender e tratar transtornos mentais. Por exemplo, o desenvolvimento de medicamentos psiquiátricos é frequentemente baseado na ideia de que desequilíbrios químicos no cérebro podem levar a sintomas de depressão e ansiedade. Além disso, o fisicalismo influencia a pesquisa em psiquiatria, incentivando estudos que buscam correlações entre a atividade cerebral e os estados mentais, como o uso de neuroimagem para identificar padrões cerebrais associados a certos transtornos psiquiátricos. Essa ênfase tem raízes históricas, e não é meramente uma limitação técnica ou teórica de uma psicopatologia em desenvolvimento.

Podemos seguir Awais Aftab e postular o seguinte raciocínio para essa visão reducionista: partimos de um compromisso geral com o fisicalismo, afirmando que os estados mentais são realizados de alguma forma pelo encéfalo, e portanto os transtornos mentais também o são; conclui-se que transtornos mentais são transtornos cerebrais, mesmo se pulamos as etapas e não definimos como um estado mental q (por exemplo, uma apreensão ansiosa) é realizada no sistema nervoso. Como aponta Anneli Jefferson, essa “visão ampla” é “misturada” com uma visão restrita de que transtornos mentais são causados por alterações patológicas no sistema nervoso, como é o caso da “paralisia geral do insano” (cuja descoberta é fundamental para a primeira fase da psiquiatria biológica, no final do séc. XIX) e das doenças neurodegenerativas. Assim, há uma espécie de “compromisso genérico” epistemológico com o fisicalismo, que eventualmente passa a ser um compromisso metafísico com o reducionismo ontológico. Esse compromisso embasa o programa de pesquisa “hegemônico” da psicopatologia, que assume a existência prévia de mecanismos neuropatológicos que devem ser descobertos; fatores psicossociais e da fisiologia geral seriam, no máximo, pontos que convergiriam para esses mecanismos neuropatológicos, modulando o risco.

Existem inúmeras críticas a esse modelo. Em um artigo a ser publicado em breve, demonstramos como as raízes históricas dessa visão – que se localizam no nascimento do “programa neuromolecular” das Neurociências – ganham tração com a mudança das relações materiais que engendram uma racionalidade neoliberal. Assim, podemos criticar essa visão a partir de uma perspectiva histórica, apontando como se relaciona a uma determinada racionalidade emaranhada no desenvolvimento histórico do capitalismo contemporâneo. Também podemos criticá-la a partir da perspectiva da maioria dos profissionais de saúde mental no Brasil, que sugerem que o foco excessivo em neuropatologia desvia o foco dos processos psicossociais, contribuindo para a medicalização. Podemos, finalmente, fazer a crítica szasziana (que infelizmente têm voltado a ser influente no campo da despatologização), que afirma que transtornos mentais não têm nada a ver com o sistema nervoso, e portanto não são transtornos.

Uma dialetização adequada desses processos, entretanto, aponta que uma dicotomia entre processos/transtornos mentais vs. processos/transtornos cerebrais é insustentável. Abandonar a visão reducionista não significa abandonar um compromisso com o fisicalismo; em certo sentido, é óbvio que transtornos mentais são transtornos cerebrais, no sentido amplo: há, para toda forma de sofrimento, uma materialidade, uma instanciação no sistema nervoso. Mas, como aponta Mark Fisher, “É evidente que todas as doenças mentais são instanciadas neurologicamente, mas isso não diz nada sobre a sua causalidade”.

Insisto, como em um post anterior, que parte da resposta está não em abandonar a neurobiologia, mas em pensar modelos e explicações neurobiológicas mais complexas e que dêem conta do problema. Sanneke de Haan sugere que o problema mente-corpo deve ser entendido também como um problema mente-corpo-mundo, como maneira de evitar os reducionismos. Assim, não é possível conceber o sofrimento psíquico como algo que não um processo cerebral – mas também não podemos pensar o sofrimento psíquico como somente um processo cerebral: “Os transtornos psiquiátricos paradigmáticos não são transtornos do cérebro no sentido restrito – eles não são expressões de um processo cerebral que seja identificável como disfuncional em um indivíduo sem fazer referência aos sintomas psicológicos, e em que a disfunção precede casualmente os sintomas mentais“.

Advogo, como muitos neurocientistas, uma posição intermediária entre a “visão restrita” e a visão mais ampla (o “compromisso geral com o fisicalismo”). Isso implica em entrar em uma área nebulosa, em que processos cerebrais associados ao sofrimento psíquico deverão ser empiricamente identificados, com diferentes graus de possibilidade, e sempre emaranhados em outros processos corporais e na relação com o ambiente, sobretudo o ambiente social. Isso exige contextualizar essas identificações em teorias robustas sobre a relação entre cérebro e mente, entre cérebro e mundo, e entre mundo social e mente; essa contextualização dificilmente virá somente de estudos experimentais de laboratório, e teremos muita dificuldade de fazer isso enquanto as dimensões subjetivas do sofrimento, bem como as dimensões sociais e antropológicas (conforme estudadas pelas ciências sociais, e não conforme imaginadas ou reduzidas pelas ciências experimentais), forem ignoradas ou deixadas de lado.

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