Qual o papel dos modelos na Ciência? Por que ensinar isso na Educação Básica?

Pêndulo de Foucault

A utilização de modelos na ciência é algo tão central que diversos teóricos se debruçaram sobre o problema do que é um modelo, quais são seus usos epistemológicos, e quais são seus aspectos semânticos. Por que isso é importante para o ensino de ciências?

As funções do modelo nas ciências

O Oxford Dictionary of Philosophy define um modelo a partir de uma perspectiva semântica – ou seja, como uma “representação de um sistema por outro, usualmente mais
familiar, cujo funcionamento se supõe ser análogo ao do primeiro”. Podemos pensar os diferentes modelos atômicos, a estrutura da molécula de DNA, os modelos computacionais de fenômenos metereológicos, e os modelos teóricos de aprendizagem (p.ex., Rescorla-Wagner) nesse sentido. É muito difícil definir o que essas coisas têm em comum, de um ponto de vista ontológico, mas elas apresentam semelhanças epistemológicas e semânticas:

  1. Todo modelo científico tem a função semântica – isso é, o modelo é uma estrutura concreta ou abstrata que representa alguma outra realidade, seja um fato, uma coisa, ou um fenômeno.
  2. Os modelos têm uma função epistemológica – isso é, são usados para conhecer e raciocinar sobre o mundo. Seguindo Suzanne Bachelard: “o modelo é um intermediário a quem delegamos a função de conhecimento”.

Agustín Adúriz-Bravo, um epistemólogo e pesquisador da educação argentino, nos dá um bom quadro de referência para entender as várias teorias sobre modelos que existem na epistemologia: ele cruza a dimensão epistemológica (quais são os usos cognitivos dos modelos na ciência?) com a dimensão semântica (como um modelo representa a realidade?). Essas dimensões, como mostrei, não são as únicas propriedades possíveis dos modelos científicos, mas são as mais interessantes.

Taxonomia dos modelos de Agustín Adúriz-Bravo. Licença Creative Commons BY-SA 4.0.

Adúriz-Bravo usa o exemplo do pêndulo para ilustrar sua taxonomia:

  • Como paradigma (modelo-para / modelo-entrada), o pêndulo é um objeto real que é utilizado na Física para abstrair as leis de seu movimento.
  • Como instância (modelo-de / modelo-entrada), o pêndulo é um objeto real que melhor exemplifica o conceito de oscilação harmônica.
  • Como esquema (modelo-para / modelo-saída), o pêndulo é um conjunto de instruções para entender e construir artefatos com comportamento previsível.
  • Como cópia (modelo-de / modelo-saída), o pêndulo é uma representação estilizada e fortemente simplificada de um objeto em oscilação.

Existe um extenso debate sobre o aspecto semântico dos modelos – a saber, o que significa dizer que um modelo representa algo? Seguindo Bas van Fraassen, considero esse um problema pragmaticamente menor. A adequação dos modelos tem menos a ver com sua correspondência com a realidade em si, e mais com sua função epistemológica:

o que os define como bons ou maus modelos é a estrutura teórica que carregam, ou o seu modelo teórico. Pode-se dizer então que um modelo não tem tanto valor em si mesmo, se não naquilo que ele faz e para aquilo que ele serve

Silva & Catelli, 2019

Assim, um dos principais motivos pelos quais os modelos são importantes para as ciências é que eles têm muitos usos cognitivos. Por exemplo, por serem, por definição, simplificações da realidade, os modelos são veículos para conhecer o mundo. Assim, uma parte razoável da pesquisa científica é o estudo de um modelo, e, ao fazê-lo, os cientistas podem descobrir coisas novas sobre o sistema que é representado por ele – isso é, o modelo é o “intermediário a quem delegamos a função de conhecimento” aludido por Suzanne Bachelard. Por exemplo, os cientistas estudam a natureza dos átomos de hidrogênio ou dos receptores ACE-2 através do estudo de seus modelos. Nancy Nersessian define esse raciocínio baseado em modelos como “realizar inferências a partir da criação de modelos e de sua manipulação, adaptação, e avaliação”.

Adúriz-Bravo apresenta cinco características da visão semântica dos modelos que são relevantes para essa função epistemológica:

  1. A visão semântica prioriza uma aproximação pragmática, semântica, e retórica aos objetos das ciências, tirando o foco da estrutura lógica e sintática das teorias. Ela “muda seu interesse para como as teorias científicas dão sentido ao mundo no qual são aplicadas e como fazem sentido para aqueles que as aplicam (os ‘agentes cognitivos’, incluindo estudantes e professores)”.
  2. A visão semântica tem um aspecto “práxico”, ao assumir que uma teoria científica não é redutível à sua natureza proposicional (estrutura lógica), mas também contêm “um ‘know-how’ em torno das explicações e intervenções que podem ser realizadas com elas”.
  3. A visão semântica considera que, ainda que as teorias sejam mais do que a soma de sua modelos – existem também relações lógicas e experimentais que dão coerência ao todo -, é mais produtivo entender uma teoria identificando e caracterizando as classes de modelos que correspondem a essas teorias.

Qual, então, é a importância dos modelos e do raciocínio baseado em modelos no ensino de ciências?

O papel dos modelos no Ensino de Ciências

Novamente, Adúriz-Bravo pode nos ajudar com essa resposta. Ele argumenta que a visão semântica dos modelos pode ter implicações para o ensino de ciências. A mudança da concepção sintática (teorias e formalismos lógicos) para a concepção semântica (modelos) implica em prestar menos atenção a aspectos formais e mais atenção aos significados. Isso removeria o enorme peso dos formalismos proposicionais, muitas vezes ensinados de maneira rígida, trazendo o foco para entender certos fenômenos que poderiam ser representados por conceitos teóricos. Os modelos escolares poderiam ser usados como representações teóricas do mundo (“Uma representação substituta em qualquer meio simbólico que permita pensar, falar e agir com rigor e profundidade sobre os sistemas em estudo poderia ser entendida como modelo teórico”). Adúriz-Bravo sugere não só os modelos matemáticos altamente formalizados, mas qualquer coisa que possa ser usada para descrever, explicar, prever, e interferir nos fenômenos. Ao mudar o foco, trazemos o ensino de ciências para algo que tenha sentido para o estudante.

Além disso, os modelos escolares podem ser usados como representações teóricas do mundo. Aqui, precisamos clarificar o que quer dizer modelo escolar: é una representação substituta em qualquer meio simbólico que permita pensar, falar e intervir com rigor e profundidade sobre os sistemas em estudo. Adúriz-Bravo exemplifica aqui não só com modelos matemáticos altamente formalizados, mas também com modelos materiais, imagens, tabelas, gráficos, redes, analogias, etc.

Como introduzir os modelos em sala de aula? Izquierdo-Aymerich e Adúriz-Bravo sugeriram que isso pode ser feito através de fatos reconstruídos, porque a ciência escolar (i.e., a ciência ensinada na escola) não é exatamente a mesma coisa que a ciência praticada pelos cientistas:

Estes fatos-chave, teoricamente reconstruídos, ‘paradigmáticos’ permitiriam aos estudantes dar sentido aos fenômenos do mundo ao seu redor (por exemplo, gravitação, oscilações, movimentos, colisões…), que lhes pareceriam ‘similares’ a tais fatos.

Adúriz-Bravo, 2013

Como, na taxonomia de Adúriz-Bravo, os modelos contém os sistemas a serem explicados, e podem ser usados como modelos-para como forma de entender e interver nesses sistemas, essa reconstrução – ou, ainda, essa transposição didática – pode ser uma forma de ensinar o raciocínio baseado em modelos e a pensar criticamente a ciência.

Uma forma importante de introduzir esse raciocínio é de maneira ativa – ou seja, não ensinar (somente) quais são os modelos científicos escolares, mas o ato de modelar. Adúriz-Bravo define quatro sentidos do termo “modelagem” em contexto escolar:

1. ‘modelagem’ como a construção ou criação de modelos científicos originais, novos em relação ao corpo de conhecimento estabelecido em um determinado momento histórico;
2. a ‘modelagem’ como o processo de subsumir os fatos científicos a serem investigados sob modelos disponíveis que podem explicá-los, ou dar conta deles;
3. a ‘modelagem’ como o ajuste de modelos estabelecidos após o surgimento de dados novos, surpreendentes ou anômalos durante a pesquisa; e
4. a ‘modelagem’ como o ‘exercício’ intelectual de aplicar modelos existentes para explicar fatos estudados em um ambiente de aprendizagem

Adúriz-Bravo, 2013

Ele sugere que um método para introduzir essas quatro formas de modelagem implica em derivar consequências a partir de conceitos teóricos (a dimensão de linguagem científica) e em extrair dados a partir de observações e experimentos. O objetivo da modelagem escolar seria, então, traduzir a transposição didática entre esses dois elementos.

Essas dimensões da modelagem escolar exploram basicamente a ideia de que os modelos podem ser modelos-para como forma de entender os fenômenos do mundo. Mas os modelos científicos podem ser simultaneamente modelos-para e modelos-de – ou seja, ao mesmo tempo em que são simulações abstraídas de um fenômeno, são também exemplares com os quais podemos criar novos modelos. Isso é particularmente verdadeiro no caso dos modelos escolares, em que um modelo apresenta essas duas funções: o modelo escolar de uma célula é tanto uma simplificação altamente esquemática daquilo que é observável em cortes histológicos, quanto uma espécie de “protótipo” a partir do qual alunas e alunos podem desenvolver seu conhecimento sobre os diferentes tipos celulares. Perceber essa dualidade do modelo escolar permite que um modelo abstrato possa ser usado, por analogia, para representar mais de um fenômeno.

Visualização do modelo escolar de célula animal. Licença Creative Commons CC0 1.0

Hora do jabá

Qualificação do mestrado do Darlan

Meu ex-orientando Darlan Morais, egresso do PPGECM, escreveu sua dissertação sobre modelos no ensino de ciências – mais especificamente, sobre o papel dos modelos materiais (físicos, como modelos anatômicos ou representações físicas de células). Ficou interessade? Leia a dissertação no link.

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