O placebo como fenômeno biocultural

O efeito placebo é um interessante fenômeno biocultural – algo que está na intersecção entre a cultura e a biologia. Na Farmacologia, o interesse no efeito placebo se dá em pelo menos dois campos: no desenvolvimento de novos fármacos, em que a eficácia de uma nova droga é testada contra-placebo; e na terapêutica, em que o efeito placebo pode ser utilizado para aumentar o efeito de um medicamento, ou para produzir um efeito terapêutico na ausência de um efeito “real”. Essa última palavra é uma chave para entender os vários sentidos do termo “placebo”: se, nos ensaios clínicos, o placebo é definido como o controle, a ausência de efeito, na terapêutica e na pesquisa básica é precisamente a realidade do efeito que interessa.

A filósofa Charlotte Blease argumentou, em um artigo sobre a epistemologia do placebo, que essa interessante distinção entre um campo para o qual o placebo representa essencialmente uma falsidade e outro no qual representa uma realidade apresenta uma demarcação em crenças metafísicas tácitas:

No contexto do uso dos placebos nos ensaios clínicos, descobrimos que esses são normalmente descritos como tratamentos de “engodo” [“sham”, no original] empregados tão somente com objetivos metodológicos […]. Há também uma crença fundamental entre os estudiosos do placebo, comumente explícita, de que os placebos usados nos ensaios clínicos devem imitar todos os aspectos do tratamento sob investigação, com exceção do(s) componente(s) de remédio hipotetizado.

Quando observamos o segundo uso distinto – os placebos na prática clínica e na pesquisa básica -, os cientistas aderem ao pressuposto metafísico de que os efeitos placebo constituem “um evento psicobiológico genuino”, e que a pesquisa empírica sobre o efeito placebo tem como objetivo identificar os mecanismos que dão origem a esses efeitos […]. Outros pressupostos tacitamente assumidos – comumente articulados explicitamente [pelo segundo campo] – incluem a afirmação de que os placebos como tratamento de engodo (quando usados em contextos clínicos ou experimentais) não são necessários (ou sequer suficientes) para eliciar o próprio efeito placebo .

Charlotte Blease, “Consensus in Placebo Studies: Lessons from the philosophy of science”

Essas crenças implícitas ou explícitas levam a uma distinção mais nuançada entre “respostas placebo” e “efeitos placebo”: o placebo como resposta são considerados como todas as respostas que podem ser medidas após a administração de um placebo, incluindo remissão espontânea, regressão à média, efeito Hawthorne, e viés de relato entre participantes. Assim, as respostas placebo podem ou não envolver um efeito psicobiológico real (= efeito placebo). Como aponta o filósofo François Dagognet:

“Nessas condições, torna-se delicado distinguir, no conjunto de um êxito e de uma cura, o imaterial e o estritamente biológico, os fatores antropológicos e os fatores farmacodinâmicos”.

François Dagognet, “A razão e os remédios

O efeito placebo, que pode ser parte da resposta placebo observada nos ensaios clínicos, é um fenômeno psicobiológico bastante complexo. De um ponto de vista psicológico, parece envolver principalmente expectativas de resposta, a antecipação de respostas automáticas, subjetivas, e comportamentais a pistas situacionais particulares, e condicionamento do tipo clássico. De fato, existem diferentes explicações para o efeito placebo, e nenhuma delas reduz o fenômeno à medicação em si, mas a todo um conjunto de fatores contextuais – o médico, seu discurso, seu jaleco branco, uma pílula – se associam, em uma assembleia complexa, em uma cura:

“Pelo fato de a terapêutica constituir uma experiência indireta do homem (o médico) sobre o homem (o doente), um inevitável encontro humano, por meio de uma matéria (o remédio) suscetível de exaltar a saúde ou de restituí-la, ela põe fatalmente em ação uma pluralidade de forças psicológicas, individuais, variáveis tanto quanto poderosas”.

François Dagognet, “A razão e os remédios

Isso significa também que o efeito placebo não é algo que existe somente na ausência de um agente medicamentoso, mas, em seu limite, toda relação terapêutica gera sua cota de placebo, como argumentam Opher Caspi e Richard Bootzin. A análise de ensaios clínicos que “falharam” (i.e., não obtiveram efeitos maiores do que o placebo) indicam que a própria participação no ensaio clínico pode ter efeitos terapêuticos (como sugerem uma metanálise e uma etnografia). Junto com a expectativa, o desejo parece produzir também um efeito sinergístico, ao gerar uma espécie de “alça de retroalimentação” entre expectativa e desejo em que ambos potencializam o foco somático:

[As] sugestões positivas do placebo para a melhora na saúde física levam os indivíduos a atentar seletivamente aos sinais [corporais] de melhora. Quando eles percebem esses sinais, diz-se que os tomam como evidência de que o tratamento com placebo foi efetivo.

Donald Price, Damien Finniss, Fabrizio Benedetti, “A comprehensive review of the placebo effect: recent advances and current thought

Esses mecanismos também apontam para um efeito para além das respostas conscientes que costumam ser consideradas quando se fala em expectativas ou desejos. Jennifer Jo Thompson, Cheryl Ritenbaugh e Mark Nichter, a partir de uma leitura antropológica, insistem na necessidade de uma perspectiva em que a construção de significados não se dê no nível da consciência auto-reflexiva, mas de uma sensibilidade corporificada. Quando Price, Finniss, e Benedetti falam em atenção seletiva a sinais corporais, não estão necessariamente falando de uma atenção proposital e consciente.

Existem, entretanto, efeitos psicobiológicos bastante reais que subjazem o placebo, e que parecem ser específicos para o tipo de efeito observado. Essa é a base da “ressonância corpo/mente/emoções” que Thompson, Ritenbaugh, e Nichter falam. Por exemplo, quando a expectativa é de analgesia, a administração de placebo induz a ativação do sistema opióide no córtex pré-frontal dorsolateral, no córtex cingulado anterior, no núcleo acumbente, e na ínsula. Essas regiões também estão envolvidas na analgesia mediada pelo sistema opióide, seja por contexto (p.ex., analgesia induzida pelo medo) ou por drogas como morfina. Esse sistema opióide antinociceptivo ativado por placebo é contrabalançado por um sistema pró-nociceptivo (que induz dor), mediado por um peptídeo chamado colecistocinina (CCK).

Fonte: Ashar et al., 2017

Quando uma resposta placebo é avaliada no contexto da doença de Parkinson, ocorre a liberação de dopamina no estriado ventral associada à expectativa de benefício clínico, enquanto que uma liberação de dopamina no estriado dorsal está associada ao próprio benefício clínico. Em um estudo diferente, se verificou que a estimulação magnética transcraniana placebo (isso é, quando o aparelho de estimulação é manipulado, mas não está ligado), os neurônios do núcleo subtalâmico mudam sua taxa de disparos.

Fonte: Benedetti et al., 2011

A terapia com placebo ou com fluoxetina (cujo efeito clínico na depressão é bastante baixo) têm efeitos semelhantes no córtex orbitofrontal e no estriadoventral após uma semana de tratamento, e no córtex cingulado anterior e córtex pré-frontal após seis semanas de tratamento. Como a fluoxetina inibe a recaptação de serotonina, é provável que esse neurotransmissor esteja envolvido também no efeito placebo. Entretanto, ainda não se sabe se o efeito placebo da fluoxetina também produz o mesmo efeito neuroquímico, e essas drogas poderiam produzir efeitos totalmente diferentes.

Fonte: Benedetti et al., 2005

Todos os mecanismos exemplificados indicam que vários estímulos sociais dentro do contexto de um determinado tratamento podem ativar neurotransmissores e moduladores que se ligam aos mesmos receptores aos quais as drogas se ligam e podem desencadear caminhos bioquímicos que são similares àqueles ativados por agentes farmacológicos. O conhecimento atual é insuficiente para que possamos entender se a ativação de receptores específicos é uma característica de um procedimento placebo específico (somente a expectativa de efeito motor ativa vias dopaminérgicas? Somente a expectativa de efeitos analgésicos ativa vias opióides? &c)

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